Solteira, Casada, Viúva, Divorciada
Sinopse:
A peça Solteira, Casada, Viúva, Divorciada, dos autores: Maria Adelaide Amaral, Regiane Antonini, Luiz Arthur Nunes e Noemi Marinho, possui no original quatro cenas, uma de cada autor, uma de cada estado civil das personagens, porém nesta montagem optamos por realizar três, já que a Do Carmo, de autoria de Maria Adelaide Amaral, é uma casada que se torna viúva e corresponde ao título e as necessidades de conteúdo da proposta. São elas:
Solteira: A telefonista Vilma, funcionária de uma empresa de autoajuda, procura manter-se sempre imparcial aos telefonemas que recebe, tentando sempre ajudar da melhor maneira possível. Porém, com o passar do tempo, a tensão das pessoas e os problemas escutados vão deixando a pacata telefonista numa crise de nervos fazendo a mesma virar o jogo da cena.
Casada e viúva: Do Carmo descobre no velório do marido que ele mantinha uma relação com outra mulher há muito tempo e que pretendia se divorciar dela. Desesperada e em crise de existência, Do Carmo começa a questionar e discutir a sua vida com o marido morto.
Divorciada: Catarina Fields, atriz decadente que se coloca num patamar de estrela, está se preparando para uma festa de aniversário do ex-marido. Enquanto se arruma, conversa com seu amigo Joel o tempo inteiro, falando de sua vida e de suas relações amorosas.
Três personagens distintas onde reagir é a palavra adotada para todo desenlace e todas estão para o enfrentamento, para a superação, para a transgressão do que é, e do que pode ser de suas vidas. Uma mesma atriz, uma mesma pesquisa e a versatilidade, que é a característica de Leda Fernandes nestes papéis, faz do espetáculo um apanhado de circunstâncias distintas, que ora faz rir, gargalhar, ora chorar, mas em todo momento envolver. Não perder o expectador, levá-lo para um passeio para três vidas, que mesmo sendo cotidianas, sem eventos épicos, são potentes, são próximas às vidas de cada um que esteja na plateia, e pelo compromisso da atuação, compartilhada, ver o espetáculo é um renovar de forças e do acreditar na possibilidade da escolha para o melhor!
FICHA TÉCNICA
Solteira – Noemi Marinho
Casada e viúva – Maria Adelaide Amaral
Divorciada – Regiana Antonini
Direção: Nilceu Bernardo
Elenco: Leda Fernandes
Cenário: Nilceu Bernardo
Figurino: Eliandra Marcolino
Iluminação e operador de luz: Nilceu Bernardo
Operadora de som: Marina Ronque
Sonoplastia: A Cia
Produção Administrativa: Nilceu Bernardo e Leda Fernandes
Contra regras: Rodolfo Braga
Rodrigo Silva
JUSTIFICATIVA
É um exercício de amar!
Solteira, Casada, Viúva, Divorciada é uma comédia que apresenta a história de mulheres em busca de amor, sucesso e de purgar seus desafetos e frustrações. Escrita em 1993 a peça rendeu o Prêmio Shell de melhor atriz à Lilia Cabral, onde a montagem teve longa temporada em São Paulo, porém poucas outras montagens aconteceram, mesmo depois dessa estiagem, o texto continua intenso, atual e necessário aos palcos. Trazer novamente estas mulheres à cena é uma justa homenagem ao teatro nacional contemporâneo, onde quatro nomes da escrita cênica tecem com excelência a trajetória de vida de mulheres que á partir de sua condição civil conduz a plateia, seja ela de homens ou mulheres por um passeio emocional. Mesmo provocando o riso na maioria do tempo, a reflexão e mesmo as lágrimas tem seu lugar. Cada personagem com uma definição muito específica, seja na formação profissional, moral, social, religiosa, fazem delas mulheres muito distintas uma das outras, porém ligadas pelo desejo de viver, de se fazer perceber, de amar e ser amadas. Essas questões que todos nós carecemos, e mesmo que saibamos temos que ser pegos de surpresa, ser provocados pra despertar esses desejos mais vitais que dão cor, sabor e colorido às nossas histórias!
CONCEPÇÃO CÊNICA
O espetáculo traz esquetes representadas pela atriz Leda Fernandes. Em cada um deles a personagem, definida pela sua condição civil, traça uma circunstância cênica onde expressam toda sua vivência, com seus traumas, alegrias, conquistas e decepções. Ambientar essas circunstâncias é potencializar vidas distintas que percorrem situações específicas, mas que evidenciam o tom de superação, extravasamento e plena empatia com a plateia. Distinguir essas personagens com figurinos condizentes com sua condição econômica e psicológica é customizar personalidades. Criar um espaço com objetos essenciais á cena faz termos um espaço cenográfico útil, potente, versátil. A luz direciona e cria as sombras, o lado escuro de cada face, de cada mulher. A sonoplastia conduz climas e quebra tons para o cômico.
A atual montagem baseia-se fundamentalmente em uma pesquisa que procura de forma intensa navegar por questões cotidianas que representam o potencial emocional das mulheres com muito humor e emoção com interpretação realista, mas potente nas ondulações.
A IMPORTÂNCIA E DIFICULDADES DE UM MONÓLOGO
Monólogo não é uma montagem com recursos limitados de elenco, mas uma modalidade teatral de grande efeito artístico/psicológico, onde o condutor desempenha e cria para o público os seus interlocutores de forma vivas e autêntica, estabelecendo relações com outrem que é aceito pelo expectador de forma á exercitar a imaginação, a condição profunda de cada cena que extrapola a si mesmo, formando o terceiro sujeito com todas as suas especificidades. Na experiência de Solteira, Casada, Viúva, Divorciada, cada elemento é sabiamente explorado para que cada cena tenha sua estética única e a relação entre ator, público e personagens se tornam lineares e surpreendentes. A atriz Leda Fernandes, se apossa da técnica, da modalidade com perfeita consciência de condução de cada personagem. A personagem Vilma, a atendente, telefonista do programa de apoio emocional “Você não está só”, se relaciona com o público através do telefone, ela materializa seus usuários /interlocutores neste atendimento, onde os conflitos, tanto dos solicitantes quanto da atendente se tornam a matéria do profundo conflito da solidão. O antagonista está no outro lado da linha, mas se torna íntimo do público pela relação com Vilma. A casada, agora viúva Do Carmo está junto á urna funerária de seu marido, onde repousam as cinzas, daquele que conviveu por décadas, teve uma filha, se dedicou e agora morto, também é seu algoz, já que descobre na cerimônia de exéquias que o falecido tinha uma amante e pretendia se casar com ela. A purgação de toda a sua mágoa, raiva, ira, Do Carmo expõe de forma íntima, já que está só com o marido morto. As revelações são postas á baila, seu desejo de vingança é todo exposto, tentando saída para sua sobrevivência até como uma possível Garota de Programa, o que é total avesso à sua personalidade, toda essa dinâmica é exercida em torno das “cinzas”, do defunto que ora ri, ora responde as acusações da esposa, trazendo um tom surreal, ou mesmo de loucura da personagem que termina destilando todo a sua paixão eterna! Catarina, a irreverente atriz tem um assistente, o Joel que vive nos bastidores, até o final da cena, onde é exp0licito que é um amigo imaginário da mulher, que mesmo tendo tido vários maridos, neste momento purga a grande solidão e busca a superação dos fracassos das relações e expõe as falhas que cometeu e o desejo de superar cada trauma, cada frustração de seus tumultuados e diversificados casamentos.
Em cada cena, a personagem da vez, conduz e se coloca como agente da materialização do invisível, daquele que se torna presente através de sua constante e qualificada encenação, mostrando que o monólogo é a cena de muitos, mesmo tendo em cena apenas uma atriz, mas que ela tem como desafio apresentar tantos outros que fazem e ou fizeram parte de suas circunstâncias de vida, e isso é reconhecível e autêntico em Solteira, Casada, Viúva, Divorciada.
ANÁLISE PSICOLÓGICA:
Solteira, Casada, Viúva, Divorciada – O poder do empoderamento feminino.
Chimamanda Adichie diz em seu livro “Sejamos Todos Feministas”, as seguintes palavras: “Se repetimos uma coisa várias vezes, ela se torna normal. Se vemos uma coisa com frequência, ela se torna normal” e nos remete a algumas contradições sociais que são impostas as mulheres ou qualquer ser humano que decida lutar pela sua subjetividade. Essa profundidade das relações femininas e das conquistas que as mulheres vêm obtendo no decorrer de décadas após lutas incessantes e lágrimas derramadas, resultam em um espaço considerável nos veículos de comunicação e principalmente na sociedade. Não. Esse não é um texto melodramático que pretende designar inferioridade ao sujeito e superiorizar o objeto como uma sociedade marcada pelo machismo pretende fazer, mas pretendo ressaltar as características do empoderamento feminino e descrever na atualidade as formas que esse poder, por muito tempo subestimado, renasceu e renasce a cada dia e em cada pessoa que escolhe por suas experiências lutar pelos seus sentimentos, pelos seus objetivos e por uma vida que lhe permita a dignidade que a existência demanda.
Leda Fernandes durante aproximadamente uma hora e trinta minutos nos convida a reflexão da forma como esse empoderamento é apresentado para a sociedade e como a sociedade reage diante das formações e opiniões dignas e fortes que todo o ser humano precisa em suas concepções básicas. De forma cômica e na linguagem teatral, Leda apresenta o universo feminino, seus questionamentos e as inúmeras dificuldades que uma mulher passa apenas por ser mulher, revelando aspectos da sociedade que pouco são discutidos como, por exemplo, a relação de amor e ódio com um marido morto, em cinzas, que trai uma das personagens e como esses sentimentos são tão criticados pela sociedade, mas tão essenciais para a existência humana. As relações de ódio, afrontam e até mesmo loucura, são parte do cotidiano de qualquer individuo e esses sentimentos são essenciais para o estabelecimento de relações concretas e até mesmo vínculos afetivos. Porém com o estigma religioso, com o crescimento populacional e com a aceleração da sociedade capitalista, esses sentimentos são vistos pela sociedade como certa forma de pecado ou de erro.
O retrato que Vilma, a telefonista nos traz é primeiramente de uma mulher que vive para o trabalho. Suas ambições, metas e desejos se voltam ao trabalho que possui. Vilma é uma telefonista de uma empresa que fornece conselhos amorosos e para a vida em geral de pessoas, as quais, a personagem não conhece pessoalmente e só se relaciona pela voz, nos remetendo a uma similaridade, ainda que discreta, da atual era da tecnologia. Vilma é uma mulher, aparentemente de idade média, mas nem por isso um impeditivo, que se priva de valores emocionais para si mesma em detrimento de um trabalho que provê auxilio emocionais a outros. Ela é a típica mulher que conhece seus direitos, sabe dos seus medos e das dificuldades em ser mulher, mas por uma questão de princípios muitas vezes provindos da família e da religião, decide não encarar esses desafios ainda que sinta um enorme desejo de ser independente, encontrar um parceiro, ser amada e respeitada. Entretanto, Vilma por conta da idade, duvida e por vezes desacredita ser possível o encontro do amor permitindo-se viver a alienação de um trabalho, ainda que a função desse trabalho a faça dar conselhos amorosos a quem procura. O interessante dessa personagem é que as situações que ela idealiza e gostaria de aplicar em sua própria vida, são os conselhos que ela aplica na vida dos outros. A típica mulher do lar, casada, que cuida dos filhos e esta sempre disponível ao marido e que nas tardezinhas, após o término de todos os afazeres de casa, se reúne com a vizinhança feminina do bairro.
Do Carmo já vem de outra linha. Muito mais sofrida e muito mais madura, relata os amargos da vida e as desilusões que sofreu ao lado do marido, expondo seus sentimentos e conflitos que muitas mulheres passam durante um casamento. A convivência ao lado do homem que ama, as aflições, os desentendimentos, os conflitos com a filha e a traição do marido, movem Do Carmo à um exercício psicanalítico extremo como se o divã fosse o palco e nós, público, o terapeuta que analisa cuidadosamente cada expressão de sua fala e de seus sentimentos. Há de se convir que a personagem relata detalhes do universo íntimo que são reflexivos nas mulheres que optam pelo casamento e por uma vida a dois e o tom amargurado que utiliza demonstra as incertezas que a própria tinha em relação a vida conjugal. Possivelmente alguns conflitos consigo mesma durante a infância ou em sua própria família. Mas o mais interessante de Do Carmo é que ela retrata a particularidade máxima do universo feminino: se reinventar após algum tipo de conflito e a fidelidade com que a mulher é capaz de tratar suas relações. Justamente nesse aspecto, após o falecimento do marido, Do Carmo procura uma forma de se reencontrar na sociedade e segue procurando um trabalho, maneira que para ela a reintegrará como pessoa. Daqui desse pequeno desejo temos duas observações plausíveis: Do Carmo já esta com uma idade pouco avançada em que mínimo ou nenhum trabalho conseguirá perante a sociedade, onde o espaço para mulheres já é reduzido devido a forte influência machista do mercado de trabalho. Há empresas que tem uma política, um tanto questionável, onde o homem que tem a mesma função da mulher recebe um salário mais alto simplesmente por ser homem. E a consideração em se tornar garota de programa, uma profissão muito questionada, rebaixada a condição mais reducionista da sociedade e que carrega por traz uma independência tanto sexual quanto afetiva exuberante. Fato é que se trata de uma das profissões mais antigas do mundo e que nos leva a reflexão sobre as situações conflituosas e afetuosas, tanto internalizadas quanto externalizadas que essas mulheres passam durante sua vida.
A invenção da pílula anticoncepcional e a legalização do divorcio deram novos poderes a mulher, poderes esses que em sociedades antigas não poderiam ser exercidos e nem eram imaginados: o poder do corpo independente. Catarina, a última face de uma mulher representada e nem por isso ausente de verdades reflexivas, caracteriza toda essa gama de mulheres independentes e vivas que carregam em si vitórias e conquistas intrínsecas ao papel que desempenham na sociedade. O pensamento feminista contribuiu para o crescimento e a expansão dessa forma de viver independente e coincide com um desejo despertado por mulheres desde antes do século XIX, que lutam para encontrar espaço frente às petulâncias e arrogâncias machistas. A partir desse pensamento muitas outras figuras escondidas na sociedade tomaram voz e também se puseram a lutar por seus direitos de serem reconhecidos e respeitados como membros de uma civilização e que estão inseridos no movimento da sociedade capitalista, que não se interrompe em momento algum. Catarina tem uma excentricidade brilhante e uma capacidade de ser dona de si mesma que inspira e cativa corações masculinos, mas não se prende a nenhum dos candidatos fazendo jus ao titulo de mulher independente e dominadora de si própria, dando asas a sensações humanas as quais na atualidade, as mulheres conseguem expressar sem maiores esforços. A resultante disso é o aumento de mulheres em cargos considerados masculinos no mercado de trabalho, mulheres solteiras que cuidam de seus filhos e trabalham garantindo o sustendo da prole e mulheres que optam por carreiras acadêmicas atingindo méritos plausíveis, conquistando espaço onde somente homens dominavam e dando voz a uma tão sonhada diversidade seja ela cultural ou de gênero. Catarina é o expoente primordial da fala de Chimamanda que diz: “Feminista feliz e africana que não odeia homens, e que gosta de usar batom e salto alto para si mesma e não para os homens”
Vivemos numa sociedade machista e ideologicamente voltada para o homem. Percebe-se até mesmo em questões de gênero que muitas vezes favorecem homens e excluem as mulheres. Judith Buttler diz que “… o gênero diferentemente do sexo é uma construção.” Essa construção é feita desde o momento que tomamos ciência do sexo biológico do bebe que ainda esta para nascer. A partir dessa certeza do sexo biológico, somos orientados a influenciar e colocar no bebê expectativas primitivas de uma sociedade onde os nomes são mais importantes que as qualidades. Meninas usam rosa e meninos azul, meninas não brincam de carrinho e meninos não podem sequer segurar uma boneca. São padrões de gênero impostos pela sociedade e internalizados na vida das pessoas desde a infância e que acabam privando a criança de conceber suas próprias aptidões e sensibilidades, entregando pronto uma subjetividade mecânica e não sólida. O empoderamento feminino vem justamente mostrar as outras faces de uma mesma moeda e contra posicionar toda uma cultura, refletindo lutas como a igualdade de gênero, a independência da mulher e problematizando o preconceito.
Referencias Bibliográficas:
Adichie N.C. Sejamos todos Feministas Editora Schwarcz S.A, 2012.
Buttler J. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.
Por RODRIGO CAETANO
Público
Classificação indicativa – a partir de 12 anos. O espetáculo é indicado para pessoas que se interessam por teatro de qualidade com grande dose de humor e profundidade das relações.